As listas de melhores do ano são tramadas. Perdemos uma enormidade de tempo a recordar as memórias de um ano de estreias cinematográficas para chegar a uma lista com o melhor que vimos em sala e logo a seguir vemos um daqueles filmes que devíamos ter visto a tempo e horas para integrar a dita lista. Serve esta breve introdução para dizer que «China - Um Toque de Pecado», o mais recente filme de Zhangke Jia, com jeitinho bem podia ter integrado a lista de melhores do ano deste blogue. Mas, como não foi visionado a tempo e horas, ficou de fora, talvez injustamente. Ou não.
Para os cinéfilos mais atentos o nome de Zhangke Jia não será de todo desconhecido. Há alguns anos atrás o IndieLisboa dedicou um ciclo inteiro à sua obra, quando o festival lisboeta ainda tinha uma das suas secções mais memoráveis, entretanto extinta. Como Herói Independente homenageado, o festival apresentou nessa edição do certame uma obra curta, mas bastante interessante. Desde então raramente a obra do cineasta chinês ficou de fora do circuito comercial e «China - Um Toque de Pecado» é o seu mais recente filme a ter honra de estreia. Trabalhando sempre na (cada vez mais) ténue fronteira entre a ficção e o documentário, Zhangke tem vindo a apresentar um retrato da China dos dias de hoje um pouco diferente da imagem que poderíamos ter do chamado milagre económico. É que para lá do milagre económico daquela que é uma das grandes potências mundiais, há pessoas, pessoas essas que têm sido retratadas nos filmes deste cineasta através de um olhar ficcional, que bem podia ser oriundo do real.
Em «China - Um Toque de Pecado» (título que consiste num trocadilho, assumido pelo próprio realizador, com «A Touch of Zen», clássico das artes marciais realizado por King Hu) o olhar do cineasta chinês parte de quatro histórias de crimes, todas baseadas em acontecimentos reais, para nos mostrar uma outra realidade da China. Cada episódio, com as suas particularidades específicas, acaba por nos apresentar algo mais do que 'simples' crimes, porque, tal como nas obras anteriores de Zhangke Jia, há muita coisa para desvendar por detrás de cada camada. Neste caso cada crime funciona quase como o ponto de partida para mostrar aspectos de uma sociedade que está por detrás do tal milagre económico chinês, seja a corrupção instalada nas pequenas localidades ou as condições laborais nas grandes fábricas chinesas, retratadas no primeiro e no quarto episódio, respectivamente.
E são estes dois, curiosamente, os episódios que melhor funcionam em «China - Um Toque de Pecado», pois não retratam simples crimes, mas algo que vai muito para lá do mero apresentar de um crime violento, apresentando em pano de fundo a tal realidade social de uma China menos conhecida e que nem sempre surge nas notícias. Não que este seja um filme desequilibrado, antes pelo contrário. Apesar de as histórias serem independentes (apenas uma personagem aparece em dois dos segmentos), acabam por formar um todo coerente. E a única diferença em relação às anteriores obras de Zhangke Jia é uma certa violência que salta (literalmente) para a frente do ecrã e pode eventualmente deixar-nos desconfortáveis durante o visionamento, pois este é um elemento que não encontramos em obras anteriores do cineasta, onde a violência talvez estivesse mais 'escondida' nas entrelinhas. Como se nos filmes anteriores do realizador essa violência estivesse de certa forma reprimida e de repente acabasse por explodir. Há muito sangue a jorrar em «China - Um Toque de Pecado», mas esta dose massiva de hemoglobina apenas serve para mostrar que nem tudo é perfeito num milagre económico e as injustiças também existem em certos modelos de sociedades que se dizem perfeitas. Ou quase perfeitas.
Nota: 4/5
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