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domingo, 27 de abril de 2014

IndieLisboa 2014, dia 26 de Abril: Do Japão com (muito) amor

O segundo dia de IndieLisboa foi dia de fazer escala em França e depois no Japão, uma vez mais com filmes completamente diferentes: um drama familiar e uma delirante comédia realizada por um não menos excêntrico realizador, Hitoshi Matsumoto, que em 2009 já tinha apresentado Symbol no festival lisboeta.

Realizado por Katell Quillévéré, Suzanne é um daqueles filmes que vale sobretudo pelas interpretações e para esta segunda longa-metragem a cineasta francesa teve a sorte de conseguir reunir um bom elenco para dar vida às personagens principais do filme. Todos os actores chegaram a ser nomeados na última edição dos prémios César, que premeiam os melhores filmes em França, tendo Adèle Haenel conquistado a estatueta de Melhor Actriz Secundária.

Partindo da história da protagonista que dá título ao filme, Suzanne é a história de uma jovem rebelde e da sua relação com a família desde a infância até cerca dos 25 anos. Não sendo um título de encher o olho, Suzanne é um filme sólido tendo em conta que estamos perante uma segunda obra, que só peca por ser pouco audaz. Se a cineasta arriscasse um pouco mais, talvez estivéssemos aqui perante uma boa surpresa. Ao invés Katell Quillévéré opta por jogar pelo seguro, tendo por base um argumento bastante simples, por vezes semelhante a muitos dos dramas familiares que temos visto oriundos do cinema francês. A única e grande diferença é que neste caso, o único risco que Katell Quillévéré corre é utilizar uma estrutura narrativa assente em inúmeras elipses, que funciona bem e não sentimos falta dos buracos deixados pelos saltos na narrativa.

E não há como não destacar a enorme presença de Sara Forestier que dá corpo e alma a uma personagem em constante luta consigo própria e com os que estão à sua volta. A jovem actriz, descoberta por Abdellatif Kechiche em A Cativa, mostra aqui que é uma boa actriz, mesmo que os seus trabalhos por cá sejam pouco conhecidos.

Num registo completamente diferente surge-nos R100, apesar de aqui também haver um drama familiar em pano de fundo. Mas é esse o único ponto de contacto entre o mais recente filme do japonês Hitoshi Matsumoto e o título de Katell Quillévéré. Contar em pormenor o drama familiar do protagonista de R100 é estragar a surpresa do visionamento deste delirante filme, tão delirante quanto Symbol, que já tinha passado pelo IndieLisboa há uns anos atrás. O melhor é ficarmos pela premissa: triste com a sua vida bastante cinzenta (e o cinzento é uma boa cor para descrever a fotografia do filme) o vendedor de mobiliário Takafumi inscreve-se num clube de sadomasoquismo e compromete-se a durante um ano submeter-se ao domínio de um conjunto de dominatrix que o vão fazer sofrer em ataques aleatórios ao longo do período do contrato, que não pode ser cancelado.

A partir daqui estamos por nossa conta e risco. Assim como já estávamos em Symbol, um daqueles objectos cinematográficos que nos deixam completamente fora de pé, tal é a quantidade de delírio que vai surgindo no ecrã e que no final, se conseguirmos sobreviver, acaba por fazer (algum) sentido. E o risco vale bastante a pena, tendo em conta que este é uma daquelas comédias descabeladas para rir do início ao fim. Hitoshi Matsumoto joga com todos os elementos da comédia e dos filmes série B (a sequência final de R100 de certeza que faz inveja a qualquer Grindhouse realizado a meias por Quentin Tarantino ou Robert Rodriguez), subverte-os e no final ainda temos direito a uma espécie de moral da história completamente delirante. O próprio título do filme faz parte do jogo, basta estar atento ao que se passa e tentar perceber este excêntrico labirinto criado por Hitoshi Matsumoto. Ou então não, podemos sempre deixar-nos levar pela loucura do filme e apenas passarmos um bom bocado, tendo em conta que vale tudo. Mesmo tudo para levar R100 a bom porto.

Suzanne repete no dia 28 de Abril às 16h30 na Sala 1 do Cinema City Campo Pequeno.

R100 repete no dia 30 de Abril às 23h50 na Sala 1 do Cinema City Campo Pequeno. 

sábado, 26 de abril de 2014

IndieLisboa 2014, Dia 25 de Abril: Regresso ao passado

O título deste post poderá ser antagónico, mas por estes lados não se pretende um regresso ao passado pré-25 de Abril de 1974, antes um regresso precisamente aos dias em que a população portuguesa saiu às ruas e deu asas à sua alegria e sonhos reprimidos durante uma longa ditadura. Desabafos à parte, vamos ao que interessa: o início da cobertura do Indie. Ontem foi dia de viajar no tempo através de duas obras completamente diferentes, tanto no género, como na origem: um documentário histórico, realizado por um cineasta de Leste, e um clássico norte-americano assinado por um dos maiores realizadores de sempre.

No papel Al Doilea Joc, do romeno Cornelius Porumboiu, tinha tudo para ser interessante. Mas falha redondamente, tal como os avançados do Steaua e do Dínamo de Bucareste que se defrontam ao longo do jogo de futebol que é mostrado no filme. A partida, realizada a 3 de Dezembro de 1988, foi arbitrada por Adrian Porumboiu, pai do realizador, que dias antes tinha sido ameaçado de morte através de um telefonema anónimo atendido precisamente por Cornelius, na altura uma criança. Vivia-se ainda sob a ditadura de Ceausescu, que acabaria no ano seguinte, e o medo pairava sobre a sociedade romena.

O telefonema e o jogo de futebol, que acabou por acontecer com o árbitro previsto, foram os pretextos para Cornelius Porumboiu realizar Al Doilea Joc. Ao longo de 94 minutos pelo ecrã passa o jogo de futebol entre as duas equipas, bastante ligadas ao regime (uma representava o Exército e a outra a Polícia), enquanto pai e filho vão comentando o que se passa dentro de campo e algumas questões fora das quatro linhas. À partida o documentário podia ser um interessante regresso ao passado, não só para ambos os protagonistas recordarem o que viveram naqueles dias, mesmo sendo bastante imprevisível o que poderia ser dito (e partimos do princípio que a conversa foi feita sem cortes ao longo da partida, como se os dois estivessem a comentar o jogo ao nosso lado), mas também para nós, enquanto espectadores e de certa forma voyeurs, podermos escutar aquela conversa.

Mas, tal como o jogo, bastante chato (estamos nos antípodas do futebol espectáculo dos dias de hoje) e rijo, a conversa é bastante monótona. Cornelius bem tenta tirar nabos da púcara do pai, mas este esquiva-se sempre às questões e por vezes nem sequer responde, ficando apenas as imagens do jogo em silêncio. Por vezes é o próprio Adrian a perguntar ao filho a quem é que interessará uma partida de futebol como outra qualquer, ocorrida há mais de duas décadas. E o diálogo travado em Al Doilea Joc tem o mesmo destino. Podia ser o ponto de partida para o debate de inúmeras questões, desde o que mudou na situação do país desde aquela altura até às diferenças entre o futebol que se praticava nos anos 1980 e o panorama actual, mas é tudo muito escasso. Há aspectos curiosos focados na conversa dos dois intervenientes, mas tudo muito pela rama. 

Termina assim o desafio, com ambas as equipas a saírem de campo, os resultados da jornada a passarem no ecrã da transmissão. E uma tremenda desilusão face ao resultado final, dentro e fora das quatro linhas. Apenas poderá ter algum interesse para os saudosistas do futebol que se praticava na altura, que podem comparar o futebol que se jogava na altura e o que se pratica nos dias de hoje (há regras que já não existem por exemplo), e para quem tem curiosidade em rever um dérby do futebol romeno onde pontuavam estrelas como o mítico Gheorghe Hagi (conhecido em tempos como o Maradona dos Cárpatos) ou Florin Raducioiu, nomes que mais tarde singraram em grandes emblemas do futebol europeu.


O melhor deste primeiro dia de IndieLisboa acabou por ser a segunda parte, com um dos pratos fortes da secção Director's Cut deste ano: Chamada Para a Morte, de Alfred Hitchcock, na versão 3D, como filmada pelo mestre do suspense na década de 1950. E o que mais espanta nesta versão do clássico é que há 60 anos atrás foi possível utilizar, de forma magistral, o 3D. O filme, visto como uma experiência da Warners para tentar lançar esta nova tecnologia, não cativou os estúdios na altura e o 3D voltou para a gaveta praticamente até James Cameron o resgatar em todo o seu esplendor, já no século XXI, com Avatar, relançando a tecnologia, para o bem e para o mal. 

Mas esta versão de Chamada Para a Morte é tudo menos uma experiência falhada e talvez seja uma das melhores utilizações do 3D da História do Cinema, mesmo comparando com algumas produções actuais, que utilizam esta tecnologia apenas para aproveitar uma nova moda. Na altura o clássico de Hitchcock talvez tivesse sido filmado em 3D precisamente nesta lógica, de criar um novo incentivo para levar as pessoas para as salas de Cinema. Mas nota-se que neste caso o 3D é utilizado não apenas como um simples efeito especial (que não deixa de o ser), mas quase como que um elemento do próprio filme. E tudo é construído tendo em conta este elemento, que dá uma profundidade estrondosa aos cenários e nos envia para dentro da tela como poucos. 

É fabulosa a forma como os objectos surgem no ecrã e nos dão essa noção de profundidade ou como em algumas cenas as mãos dos actores quase nos tocam na cara. Curiosamente este efeito acontece poucas vezes o que poderá indicar que Hitchcock já teria uma noção de que seria demasiado invasivo para o espectador se estivesse sempre a abusar do 3D, como que a dizer 'olhem, isto é em 3D'!. Ou seja, mesmo sendo uma primeira utilização da tecnologia num grande filme de estúdio, já havia essa noção de que o muito nem sempre é o ideal. Percebe-se que é uma experiência, mas sabe-se o que se está a fazer. Não se está a fazer só porque sim.

Se a versão original de Chamada Para a Morte já era bastante recomendável (estamos em puro terreno hitchcockiano, onde o humor negro impera na história de um homem que tem o plano perfeito para matar a sua esposa, mas o plano acaba por correr mal), esta versão em 3D é mais do que recomendável. Diria quase obrigatória. Em suma: goleada do mestre Alfred Hitchcock, que nos deixou com uma enorme vontade de ver de seguida a versão 2D do filme

Al Doilea Joc repete no dia 1 de Maio às 00:00 e 2 de Maio às 23h55, sempre na Sala 3 do Cinema City Campo Pequeno.

Chamada Para a Morte repete no dia 29 de Abril às 16h30 e no dia 2 de Maio às 23h50, sempre na Sala 1 do Cinema City Campo Pequeno. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

China - Um Toque de Pecado, de Zhangke Jia (2013)

As listas de melhores do ano são tramadas. Perdemos uma enormidade de tempo a recordar as memórias de um ano de estreias cinematográficas para chegar a uma lista com o melhor que vimos em sala e logo a seguir vemos um daqueles filmes que devíamos ter visto a tempo e horas para integrar a dita lista. Serve esta breve introdução para dizer que «China - Um Toque de Pecado», o mais recente filme de Zhangke Jia, com jeitinho bem podia ter integrado a lista de melhores do ano deste blogue. Mas, como não foi visionado a tempo e horas, ficou de fora, talvez injustamente. Ou não.

Para os cinéfilos mais atentos o nome de Zhangke Jia não será de todo desconhecido. Há alguns anos atrás o IndieLisboa dedicou um ciclo inteiro à sua obra, quando o festival lisboeta ainda tinha uma das suas secções mais memoráveis, entretanto extinta. Como Herói Independente homenageado, o festival apresentou nessa edição do certame uma obra curta, mas bastante interessante. Desde então raramente a obra do cineasta chinês ficou de fora do circuito comercial e «China - Um Toque de Pecado» é o seu mais recente filme a ter honra de estreia. Trabalhando sempre na (cada vez mais) ténue fronteira entre a ficção e o documentário, Zhangke tem vindo a apresentar um retrato da China dos dias de hoje um pouco diferente da imagem que poderíamos ter do chamado milagre económico. É que para lá do milagre económico daquela que é uma das grandes potências mundiais, há pessoas, pessoas essas que têm sido retratadas nos filmes deste cineasta através de um olhar ficcional, que bem podia ser oriundo do real.

Em «China - Um Toque de Pecado» (título que consiste num trocadilho, assumido pelo próprio realizador, com «A Touch of Zen», clássico das artes marciais realizado por King Hu) o olhar do cineasta chinês parte de quatro histórias de crimes, todas baseadas em acontecimentos reais, para nos mostrar uma outra realidade da China. Cada episódio, com as suas particularidades específicas, acaba por nos apresentar algo mais do que 'simples' crimes, porque, tal como nas obras anteriores de Zhangke Jia, há muita coisa para desvendar por detrás de cada camada. Neste caso cada crime funciona quase como o ponto de partida para mostrar aspectos de uma sociedade que está por detrás do tal milagre económico chinês, seja a corrupção instalada nas pequenas localidades ou as condições laborais nas grandes fábricas chinesas, retratadas no primeiro e no quarto episódio, respectivamente.

E são estes dois, curiosamente, os episódios que melhor funcionam em «China - Um Toque de Pecado», pois não retratam simples crimes, mas algo que vai muito para lá do mero apresentar de um crime violento, apresentando em pano de fundo a tal realidade social de uma China menos conhecida e que nem sempre surge nas notícias. Não que este seja um filme desequilibrado, antes pelo contrário. Apesar de as histórias serem independentes (apenas uma personagem aparece em dois dos segmentos), acabam por formar um todo coerente. E a única diferença em relação às anteriores obras de Zhangke Jia é uma certa violência que salta (literalmente) para a frente do ecrã e pode eventualmente deixar-nos desconfortáveis durante o visionamento, pois este é um elemento que não encontramos em obras anteriores do cineasta, onde a violência talvez estivesse mais 'escondida' nas entrelinhas. Como se nos filmes anteriores do realizador essa violência estivesse de certa forma reprimida e de repente acabasse por explodir. Há muito sangue a jorrar em «China - Um Toque de Pecado», mas esta dose massiva de hemoglobina apenas serve para mostrar que nem tudo é perfeito num milagre económico e as injustiças também existem em certos modelos de sociedades que se dizem perfeitas. Ou quase perfeitas.

Nota: 4/5

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Tal Pai, Tal Filho, de Hirokazu Koreeda (2013)

Há qualquer coisa no olhar de Hirokazu Koreeda que nos fascina. Não serão apenas os belos filmes que nos tem apresentado ao longo dos últimos anos, mas a forma serena e terna como filma as histórias que nos traz e volta e meia temos o prazer de ver em estreia comercial. Pequenas pérolas vindas do Japão, criadas por um dos dignos sucessores do génio de Ozu (recomenda-se o visionamento de «Andando», uma espécie de variação de «Viagem a Tóquio» passada nos dias de hoje, para o confirmar), que quase passam sem darmos por elas, mas que se lhes dermos atenção acabam por ser experiências memoráveis. «Tal Pai, Tal Filho» não é excepção e foi uma das mais agradáveis fitas a passar pelas salas portuguesas no final do ano passado.

A história de um pai que descobre, seis anos depois, que o seu filho foi trocado por outro no hospital, facilmente poderia ser um dramalhão de primeira, com lágrima a espreitar ao canto do olho. Mas Koreeda foge disso como o diabo da cruz e o resultado é algo completamente diferente. Um filme sincero, que retrata o drama de alguém que a dado momento e a partir de uma situação em específico se coloca perante inúmeras questões que no limite põem em causa toda a sua vida. Não só o que fazer quando descobre que o seu filho natural não é o que criou durante seis anos, mas um miúdo criado por uma família de menos recursos do que a dele, mas também o que falhou ao longo dos mesmos seis anos para que se sinta tão longe do menino que criou e ao mesmo tempo incapaz de acarinhar e aproximar-se do seu verdadeiro filho quando este vai viver com o casal natural.

Mais do que um belo filme, «Tal Pai, Tal Filho» acaba por ser um retrato da época em que foi feito (já Fritz Lang na sua extraordinária conversa com Jean-Luc Godard - Le dinosaure et le bébé -  dizia que todos os filmes são como que documentários de uma determinada época), algo que já acontecia nos filmes anteriores de Hirokazu Koreeda, onde a família é sempre o centro da trama. Os dilemas de alguém que sempre deu tudo o que tinha a dar no emprego, descurando dessa forma a família e os que o rodeiam, da esposa ao pai, passam em pano de fundo. O final é aparentemente feliz, mas não sabemos se esta experiência limite pela qual todos passaram será suficiente para algo mudar ou se tudo irá continuar na mesma. O que não mudou, de certeza, foi o olhar sereno de Koreeda perante as suas personagens, que não deixa de nos fascinar desde que vimos pela primeira vez um dos seus filmes. Mais do que recomendável, «Tal Pai, Tal Filho» é um dos filmes obrigatórios em exibição por estes dias.

Nota: 4/5

sábado, 3 de agosto de 2013

Batalha do Pacífico, de Guillermo del Toro (2013)

Os filmes sobre Kaijus (monstros marinhos, em japonês) nunca tiveram grande tradição fora do cinema oriental, mas de vez em quando surgem filmes feitos por cineastas oriundos de outras latitudes que tentam recuperar esse espírito, cujo expoente máximo (ou talvez mais popular) será a célebre série de filmes protagonizada por Gojira, também conhecido como Godzilla. Se este monstro nipónico foi recuperado no final dos anos 1990 por Roland Emmerich, com Godzilla a invadir Manhattan, desta vez foi o mexicano Guillermo del Toro a prestar homenagem ao género, com «Batalha do Pacífico», projecto que agarrou depois de abandonar a adaptação de «O Hobbit».

A abordagem de del Toro vai um pouco mais além da de Emmerich, ao focar o filme num confronto entre a Humanidade e um conjunto de monstros que emerge das profundezas do Pacífico para tomar conta do planeta Terra. A resposta dos humanos contra esta ameaça está nas mãos de um grupo de equipas especiais que controlam gigantescos robots denominados jaegers para defrontar os kaijus. O filme acompanha o confronto final, quando os governos mundiais decidem cortar os fundos desta espécie de projecto militar numa altura em que os monstros estão mais fortes do que nunca. Resta ao líder do projecto um último esforço para derrotar de vez os kaijus, com a ajuda de um antigo piloto de robots caído em desgraça, numa batalha final sem precedentes.

No seu âmago, «Batalha do Pacífico» é uma homenagem sincera a este tipo de cinema fantástico oriundo de terras orientais. Quem cresceu a ver na televisão a série Power Rangers, já uma adaptação norte-americana de um produto japonês, perceberá a lógica deste universo. Mas, tal como geralmente acontece com todas imitações, não é perfeito e acaba por falhar ao tentar alcançar a tal perfeição do material de origem. Aqui tudo é em grande e carregou-se em força no campo dos efeitos especiais para criar excelentes criaturas e robots, esquecendo-se del Toro de algo que parece andar esquecido ultimamente nos blockbusters dos últimos tempos: um equilíbrio bem conseguido entre divertimento e um lado mais sério. O que há em excesso (o lado mais sério, que dá um tom bastante negro à história), falta no campo da diversão. Não há momentos divertidos em «Batalha do Pacífico». E os que há (basicamente as cenas protagonizadas pela dupla de cientistas loucos ao serviço dos heróis e pelo enorme Ron Pearlman, com uma personagem que entra a matar mas acaba por ser desperdiçada), falham um bocado o alvo.

Uma pena, pois apesar de as expectativas em torno de «Batalha do Pacífico» não serem tão grandes quanto isso, esperávamos um pouco mais de Guillermo del Toro, um cineasta que raramente nos desiludiu no passado e regressa à cadeira de realizador cinco anos depois do segundo episódio de «Hellboy». Não é um mau filme para este Verão, onde os blockbusters têm sido bastante fracos, mas podia ser melhor tendo em conta o historial do seu autor. Se há algo que nos deixa é saudades do bom velho del Toro, que esperamos ver de novo em forma no futuro.

Nota: 3/5

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Grande Gatsby, de Baz Luhrmann (2013)

É fácil embirrar com um filme como «O Grande Gatsby», a versão de Baz Luhrmann do clássico escrito por Francis Scott Fitzgerald considerado por muitos como um dos grandes livros sobre o período dos loucos anos 20 do século passado e uma das principais obras da literatura norte-americana. Tal como fizera com «Romeu e Julieta», o realizador australiano continua a dar a volta às regras do jogo e recria o material de origem à sua maneira, com um estilo bastante peculiar. Se na versão da peça de Shakespeare Luhrmann traz a tragédia do bardo inglês para os dias de hoje, desta vez a acção permanece no período dos anos 1920 originais, mas, como é apanágio do cineasta, com alguns elementos estranhos à tal época. Um desses elementos é a banda sonora, onde as loucas festas por onde andam as principais personagens de «O Grande Gatsby» deixam de ter a música de época, substituída por ritmos mais actuais, com algum pendor nos ritmos hip hop.

Baz Luhrmann já tinha feito algumas 'experiências' musicais anteriormente em «Moulin Rouge», mas nesse caso o estranho até se entranha. Em «O Grande Gatsby», pelo contrário, a banda sonora acaba por não funcionar de todo e tem o efeito contrário, provocando até algum efeito de distracção que não é sequer suficiente para esconder o que o filme é: um objecto oco, onde a revisitação da obra de Fitzgerald, mesmo que seja adaptada de forma bastante fiel, é uma pálida versão do original. Numa das sequências, a festa no apartamento de Nova Iorque onde Tom se encontra com a amante, chegamos mesmo a temer começar a ouvir os acordes de «Harlem Shake», um dos fenómenos virais mais recentes.

O resto é puro estilo Luhrmann: muita cor a invadir o ecrã por todos os lados (até percebemos que se pretenda enfatizar esse lado mais excêntrico da personagem de Gatsby e das suas loucas festas, mas a partir de certa altura começa a enjoar) e pouco se entra dentro das personagens que passam pelo universo da genial obra de Fitzgerald, onde estaria o grande desafio de adaptar um livro destes. E se há livros com personagens interessantes para explorar, logo a começar pela que dá título ao livro, «O Grande Gatsby» é um desses livros. Pena que nem Leonardo DiCaprio, que podia ter sido uma boa escolha para interpretar o papel de Gatsby, consiga uma interpretação à altura de outras que conseguiu recentemente, optando por um estilo demasiado exagerado para dar vida à personagem.

Em suma, se tivéssemos de escolher uma frase para definir «O Grande Gatsby» segundo Baz Luhrmann optaríamos pelo ditado popular «muita parra e pouca uva». Mas preferimos deixar um conselho de amigo: se tiver oportunidade leia o livro, a experiência será muito melhor.

Classificação: 2/5

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Um Planeta Solitário, de Julia Loktev (2011)

Com dois anos de atraso, depois de uma passagem pela edição de 2012 do IndieLisboa, chega às salas de cinema portuguesas «Um Planeta Solitário». Nesta segunda obra de Julia Loktev a relação de um jovem casal em viagem pela Geórgia, protagonizado por Hani Furstenberg e Gael García Bernal, é posta em causa depois de um encontro acidental com membros de uma comunidade local. A partir desse estranho incidente, que coloca em risco a vida dos dois sem que o guia que os acompanha possa fazer algo (e também nunca chegamos a saber bem o que se passa, pois a única personagem capaz de entender as intenções do grupo, o próprio guia, não revela o que eles disseram), o comportamento dos dois muda e a cumplicidade da relação deixa de estar presente, como se o par tivesse passado um ponto de não retorno.

«Um Planeta Solitário» parte de uma boa premissa e conta com uma realização competente de uma cineasta praticamente desconhecida, com apenas duas outras obras no currículo, uma das quais também chegou a passar pelo IndieLisboa há uns anos. Mas acaba por falhar quando podia dar um resultado melhor. Apesar da excelente química entre o par protagonista, a que se junta uma outra boa prestação de Bidzina Gujabidze, que interpreta o guia, o filme pouco mais é do que o vaguear das três personagens pelas montanhas georgianas, que custa a arrancar (apesar de muito andarem as personagens do filme), como se Julia Loktev quisesse enfatizar a força da paisagem perante a pequenez daqueles três viajantes. E os próprios dilemas que assolam as personagens, sobretudo a partir do momento em que se dá o tal encontro com os habitantes das montanhas, são pouco explorados quando havia uma enorme margem de manobra para nos mostrarem um pouco mais das personagens.

Por muito que nos fascinem as belas paisagens do Cáucaso filmadas por Julia Loktev, o resultado final acaba por se tornar de certa forma um objecto enfadonho e «Um Planeta Solitário» mais um daqueles filmes que bem podia ter perdido alguns minutos na sala de montagem.

Classificação: 2/5

domingo, 19 de maio de 2013

Photo, de Carlos Saboga (2012)

Casos de argumentistas que arriscam saltar da escrita para a realização não são raros no mundo do Cinema. O mais recente a entrar neste clube é Carlos Saboga, que começou nestas andanças ao assinar o argumento de «O Lugar do Morto», de António-Pedro Vasconcellos, e ultimamente esteve envolvido nos argumentos de dois filmes de cariz histórico: «Mistérios de Lisboa» e «As Linhas de Wellington». «Photo» é um filme completamente diferente destes dois últimos projectos de Raul Ruiz (o segundo acabou por ser terminado pela viúva do cineasta chileno, que faleceu antes do arranque das filmagens), mas a História não deixa de estar presente. Na sua estreia na cadeira de realizador Carlos Saboga conta-nos a história de Elisa (Anna Mouglalis), uma mulher que resolve ir à procura das suas raízes depois de tomar conhecimento da morte da mãe. Essas raízes, recuperadas através de inúmeras fotografias que encontra em casa da mãe, trazem-na a Portugal para tentar descobrir quem foi o seu pai. E é em Portugal que acaba por desenterrar um punhado de fantasmas que estiveram envolvidos na luta contra a ditadura de Salazar, todos com ligações à sua mãe na década de 1970.

Não sendo um grande filme, longe disso, «Photo» consegue ser uma estreia simpática para Carlos Saboga que não se espalha ao conciliar a História com H grande e a pequena história, de algumas das personagens que a viveram, mesmo que a partir do olhar de alguém que vem duplamente de fora: Elisa não só é uma estrangeira a desenterrar fantasmas longe de casa, mas também é alguém mais novo, que não viveu os factos relatados pelos homens que estiveram ligados à sua mãe. Entre ajustes de contas com o passado e diálogos que abordam os dilemas da geração que derrotou a ditadura (são vários os comentários que apontam a uma certa crítica a quem passou da idolatria a Mao a idolatrar ideologias completamente opostas para chegar a cargos políticos - só falta dar-lhes os nomes, mas quem conhece a realidade portuguesa conhecerá sem dúvida alguns exemplos), a primeira obra de Saboga enquanto realizador não desilude, pois não vai mais além do que lhe é pedido. Talvez o seu maior defeito seja essa simplicidade e falta de medo em arriscar ir um pouco mais longe. Não será um filme para ombrear com as grandes fitas portuguesas, mas passa no teste.

Classificação: 3/5

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Só Precisamos de Amor, de Susanne Bier (2012)

É difícil encontrar nos dias de hoje um filme romântico que não caia nos clichés da lamechice. E «Só Precisamos de Amor» tinha tudo para cair nessa armadilha do género, a começar pelo título. Mas o que nos dá a dinamarquesa Susanne Bier, no filme realizado após «Num Mundo Melhor», o vencedor do Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 2010, é uma comédia romântica bastante sincera sobre uma cabeleireira que sofre de cancro e descobre, na véspera do casamento da filha em Itália, que o marido a trai com uma mulher bastante mais nova. A caminho do aeroporto tem um acidente que envolve o pai do futuro genro e a partir daqui nasce uma relação de amizade entre duas pessoas descontentes com o mundo à sua volta, mas com diferentes perspectivas sobre a vida.

«Só Precisamos de Amor» está a milhas de distância de outros filmes do género estreados recentemente em sala e que mais não fazem do que repetir, até à náusea, clichés e modelos que cansam. E assim de repente lembramo-nos de dois filmes visionados há poucas semanas: «O Grande Dia», de Justin Zackham, cujo elenco recheado de estrelas veteranas acaba por salvá-lo do descalabro, e «Fintar o Amor», de Gabriele Muccino, protagonizado por um Gerald Butler claramente em formato peixe fora de água (o actor está muito melhor em «Assalto à Casa Branca», um filme de acção estreado na semana passada onde um grupo de terroristas toma de assalto a residência oficial do presidente dos EUA). 

Susanne Bier podia optar por contar a história da coitadinha, que sofre de uma doença complicada e ainda tem de aguentar com a traição do marido numa altura em que devia estar mais concentrada em travar a luta contra o cancro e apoiar a filha no momento mais feliz da sua vida. Mas não o faz, preferindo contar a história de uma forma em que nada parece forçado, apesar de o primeiro encontro entre o par protagonista (composto por dois actores que se complementam na perfeição: Trine Dyrholm e Pierce Brosnan) poder indicar que estamos prestes a entrar no perigoso mundo das comédias românticas cheias de lugares comuns. É esta a única vez em que tememos pelo regresso de Bier após o sucesso alcançado com o seu filme anterior, pois tudo o resto acaba por ser uma agradável surpresa, mesmo que este não seja o género favorito por estes lados. Mas quando nos surpreendem, como aconteceu com «Só Precisamos de Amor», acabamos por gostar.

Classificação: 3/5

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Transe, de Danny Boyle (2013)

Depois do brilharete alcançado na cerimónia de abertura da última edição dos Jogos Olímpicos, realizada em Londres no ano passado, Danny Boyle está de regresso aos filmes com algo mais negro do que o espírito das Olimpíadas. «Transe» é também o filme do realizador britânico posterior à aclamação obtida por «127 Horas» e «Quem Quer Ser Bilionário?», obras que o levaram a conquistar inúmeros óscares e nomeações aos prémios da Academia. Mas o lado mais humano destes anteriores filmes e dos Jogos Olímpicos fica de fora de «Transe» onde entramos, literalmente, dentro dos meandros mais escuros da mente humana. O protagonista é Simon (James McAvoy), o funcionário de uma leiloeira envolvido no roubo de um valioso quadro durante um leilão. O assalto corre de feição até que os cúmplices de Simon descobrem que afinal apenas têm nas mãos uma moldura sem tela. Para tentarem reaver o quadro vão atrás do funcionário da leiloeira, que entretanto ficara amnésico por ter levado uma pancada na cabeça. Será com a ajuda de uma hipnoterapeuta, contratada para entrar dentro da mente de Simon, que os criminosos vão tentar reaver o objecto roubado.

Contar mais pormenores sobre a trama de «Transe» é complicado, pois este é um daqueles filmes em que quanto menos se souber antes de entrarmos na sala, melhor. São tantas as reviravoltas e entradas e saídas de dentro da cabeça de Simon ao longo do filme que fazer spoilers é estragar toda a experiência de ver o filme. E se esta confusão, com inúmeras reviravoltas a acontecerem ao mesmo tempo, sobretudo na segunda metade do filme, quando o novelo se começa a desenrolar, podia funcionar contra «Transe», a verdade é que Danny Boyle dá conta do recado, não deixando pontas soltas.

O problema é que acaba por ter um final bastante fraco tendo em conta o material que tinha em mãos, dando a sensação que «Transe» fica bastante perto de ser um grande filme (e isso acaba por acontecer por diversas vezes ao longo do filme), mas acaba por ficar a meio caminho. É uma obra interessante a espaços, quase como que uma revisitação do filme Noir para os tempos modernos por parte do cineasta britânico (e esta não é a primeira vez que Boyle explora diferentes géneros, como aconteceu, por exemplo, com a ficção científica em «Missão Solar» ou o terror em «28 Dias Depois»), com Boyle a aproveitar a sua maneira de filmar para a adaptar ao género (e com bons resultados), mas que apenas peca por falhar na recta final, desperdiçando uma boa história com um final com muito pouco sal.

Classificação: 3/5

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Não, de Pablo Larraín (2012)

Ao quarto filme o chileno Pablo Larraín volta a dar provas de ser um dos cineastas actuais a ter debaixo de olho. Se «Tony Manero» e «Post Mortem» já tinham sido obras bastante recomendáveis, sobretudo a primeira, o talento de Larraín explodiu no ano passado com «Não», um filme sobre a campanha política que afastou Pinochet do Governo no Chile e abriu as portas à democracia naquele país, depois de 15 anos de ditadura militar. Além de ser um excelente estudo sobre os meandros da propaganda política na década de 1980, «Não» é um retrato dos últimos dias de um regime, através do olhar de um publicitário que a princípio não quer estar ligado a questões políticas, mas acaba por se ver envolvido no olho do furacão ao tomar as rédeas de uma campanha destinada a defender o voto no Não num referendo criado pelo governo chileno para legitimar o poder de Pinochet.

Candidato chileno na última edição dos Óscares ao galardão de Melhor Filme Estrangeiro (acabaria por perder para «Amor», de Michael Haneke), «Não» podia ficar-se pelo simples retrato histórico de uma época. E a utilização de uma fotografia que faz lembrar o vídeo (efeito que vimos recentemente num outro filme completamente diferente: «Computer Chess», de Andrew Bujalski) está lá para isso, para nos relembrar que o filme 'é' daquela época. Mas não, vai muito mais além do simples retrato histórico. Não é só a representação do que aconteceu de ambos os lados da campanha, com especial enfoque na campanha de oposição à ditadura militar chilena que pensava estar a defender uma causa perdida à partida. Há todo um universo paralelo que volta a ser explorado por Pablo Larraín, tal como fizera nos seus filmes anteriores, que lhe deram fama.

Neste caso «Não» parte da campanha para nos mostrar o que se passava no Chile naquela altura e é curiosa a relação entre o protagonista René (Gael Garcia Bernal) e Lucho (Alfredo Castro, habitual colaborador de Larraín com mais uma excelente interpretação, apesar de não ser o protagonista, como acontecera nos dois filmes anteriores do realizador), o chefe da agência publicitária para quem o jovem trabalha e que acaba por ter um papel de relevo na campanha do Sim devido às suas relações com o governo de Pinochet. É esta relação que acaba por ser a outra face do filme e que vai culminar numa sequência final, também ela bastante curiosa e que faz espelho com a abertura, em que ambos apresentam uma nova campanha publicitária e um deles diz «agora o Chile já está preparado para uma coisa destas», algo que não acontecia na primeira campanha a um refrigerante, onde a presença de um mimo, um elemento de certa forma alegre, era bastante criticada. E o olhar desencantado de René antes de entrar o genérico final (o olhar de alguém desiludido, ficamos com essa sensação) é de uma força tremenda, dando a «Não» uma nova panóplia de leituras até então escondidas com o rabo de fora.

Classificação: 4/5

sábado, 20 de abril de 2013

IndieLisboa 2013, Dia 2: Herzog de regresso ao corredor da morte e uma estranha forma de amar


Ao segundo dia de IndieLisboa 2013 decidimos apostar no documentário com dois nomes fortes do cartaz do festival: Werner Herzog, que regressa ao corredor da morte norte-americano para contar a história de quatro condenados à morte nos EUA, e Ulrich Seidl, um dos cineastas em foco na presente edição do Indie. E apesar de partilharem o género documental, as semelhanças entre os dois filmes visionados («Death Row» e «Animal Love») terminam aqui, pois ambos não podiam ser mais diferentes no tema e na forma como abordam a realidade que nos querem mostrar. Enquanto o cineasta alemão opta por um método mais participativo, de questionar directamente os envolvidos na história que pretende contar, sejam os condenados, os familiares ou as pessoas ligadas à investigação e julgamento dos indivíduos retratados, Seidl prefere não intervir, deixando a câmara à solta para filmar os protagonistas, pessoas para quem os animais de estimação são a sua grande paixão, por vezes muito além da simples companhia.

Comecemos por «Death Row», onde o território percorrido por Herzog é o mesmo por onde o realizador andou em «Into The Abyss», documentário que passou na última edição do IndieLisboa sobre um condenado à morte no estado do Texas. Nesse filme o realizador germânico entrevistava o jovem condenado à morte, explicando-lhe ao início que não era apoiante da pena de morte (ressalva que volta a fazer no início das entrevistas aos condenados em «Death Row»), mas que ao mesmo tempo não podia deixar de condenar os crimes praticados pelos indivíduos. E normalmente eram crimes bastante violentos, envolvendo a morte de outras pessoas. Em «Death Row» o método deste projecto televisivo é o mesmo, mas em vez de se focar apenas numa história, desta vez Herzog faz cinco retratos de condenados à morte (uma das partes é dedicada a dois condenados), cada um com pouco menos de uma hora e um dos casos no estado da Florida. Os restantes tiveram lugar no estado do Texas, um dos que mais pessoas executa por pena capital.

Apesar de cada um destes capítulos ter menor duração do que «Into The Abyss», com cerca de duas horas de duração no total,  as questões abordadas por Herzog acabam por ser as mesmas e não perdem força, apesar de os retratos serem mais compactos do que o do filme anterior: por que razão alguém mata outra pessoa e quais os seus sentimentos em relação a isso e por que razão as autoridades condenam alguém à pena de morte, algo que acontece em quase 20 estados norte-americanos. E mesmo não sendo apoiante da pena de morte, o cineasta consegue o distanciamento suficiente para levar avante o seu trabalho, relatando os crimes ocorridos e falar com muitos dos envolvidos, desde os próprios condenados, alguns dos quais continuam a lutar para tentar provar a sua alegada inocência em processos que se desenrolaram com contornos bastante nebulosos, por vezes surreais, aos seus familiares, passando por representantes da Justiça. A única defesa que Herzog faz em relação ao seu ponto de vista é quando uma das entrevistadas no último retrato o acusa de estar a humanizar a condenada, em vez de se lembrar a vítima que teve uma morte cruel. O cineasta responde-lhe afirmando que antes de mais também a condenada à morte é um ser humano, argumento que deixa a entrevistada, uma defensora pública do estado do Texas, sem palavras.

Mas mais do que um documentário sobre a pena capital e o retrato de pessoas no corredor da morte «Death Row» é uma interessante reflexão sobre como são a vida e os sentimentos de pessoas que estão numa situação peculiar em relação à maioria de nós, pois sabem que têm uma data para morrer, e em relação a um sistema que permite condenar alguém à morte. E tanto no caso do Texas como na Florida, como demonstram alguns dos depoimentos, a pena capital tem um grande apoio da população. Ao fazer estes cinco retratos Herzog não só nos apresenta uma realidade diferente, mas consegue distanciar-se suficientemente do tema, do qual tem um ponto de vista bastante vincado, para contar a história de cinco pessoas que acabaram por chegar ao corredor da morte, focando-se ao mesmo tempo em questões como Deus, os seus sonhos ou a forma como vêem o sistema e o que sentem em relação aos familiares e as vítimas dos seus crimes (nos casos em que o admitiram).

Classificação: 4/5


No extremo oposto está «Animal Love». Realizado em 1996 por Ulrich Seidl este é um documentário que não nos deixa indiferentes ao mostrar a relação de um conjunto de pessoas com os seus animais de estimação, sendo que na maioria dos casos os retratados preferem a companhia dos seus companheiros de quatro patas à dos humanos. Ao contrário de Death Row aqui o cineasta não intervém na acção a não ser quando liga a câmara e segue os retratados, tornando-nos em simultâneo voyeurs ao assistir a estas relações entre pessoas e animais, que por vezes roçam o doentio.

E há de tudo, desde quem tenha animais de estimação para simples companhia ou para pedir esmola, a casais que vêem o seu animal de estimação como o filho que nunca tiveram, passando por pessoas que têm uma relação de cariz quase sexual com o seu cão. Se o objectivo de Seidl era mostrar o universo de relações entre pessoas e animais de estimação, que como podemos comprovar em «Animal Love» é enorme, o objectivo foi alcançado em pleno. Mesmo que nos deixe com um aperto no estômago e a questionar a sanidade mental de alguns dos retratados.

Já a forma como o faz, deixa-nos algumas dúvidas, sobretudo de um ponto de vista moral. É certo que na sua essência o documentarista não tem necessariamente de ter um papel activo no que está a captar, basta apontar a câmara, filmar o mundo e mostrar o que captou ao resto do mundo. Que no fundo é o que aparentemente Seidl faz neste caso. Mas em certas sequências de «Animal Love» há um limite que é ultrapassado desnecessariamente, como quando, por exemplo, o cão de um dos pares protagonistas ataca outro na rua e se ouve a dona e uma criança, presumivelmente filha da dona do cão atacado de forma violenta, em aflição sem que ninguém faça seja o que for para ajudar o cão em apuros. Ou quando um dos cães é aparentemente abandonado no meio da estrada (até que ponto certas sequências não terão sido encenadas é uma questão que nos chega a vir à cabeça). Daí as nossas reservas em relação ao resultado final do documentário, que nos provoca algum desconforto e nos leva a pensar duas vezes na hipótese de voltar a visionar outros documentários do cineasta austríaco.

Classificação: 2/5

«Death Row» integra a secção Observatório do IndieLisboa 2013 e vai passar ainda nas seguintes sessões:

21 Abril, 21:45, Cinema City Classic Alvalade, Sala 3


27 Abril, 21:45, Cinema City Classic Alvalade, Sala 3

«Animal Love» integra a secção Observatório do IndieLisboa 2013 e vai passar ainda nas seguintes sessões:

24 Abril, 19:15, Cinema City Classic Alvalade, Sala 3

sexta-feira, 19 de abril de 2013

IndieLisboa 2013, Dia 1: Punk is Not and Dead

Começar o IndieLisboa com o regresso de dois velhos conhecidos podia ser boa ideia. Mas infelizmente o novo filme de Gustave de Kervern e Benoît Delépine, dupla que tem sido presença constante no festival e cuja maioria dos filmes tem visto estreia comercial por terras lusas, soube a desilusão. Ambientado no universo bastante peculiar dos autores de «Aaltra», «Le Grand Soir» conta a história de dois irmãos na casa dos 40 anos que não podiam ser mais diferentes: Not (Benoît Poelvoorde), um eterno punk sem preocupações para quem a vida deve ser vivida calmamente e que espalha a sua filosofia de vida com a ajuda de um pequeno rafeiro, e Jean-Pierre (Albert Dupontel), vendedor de colchões a quem a vida começa a correr mal e acaba por ser despedido. Este despedimento, culpa da crise e da falta de resultados, leva Jean-Pierre a entrar numa espiral de auto-destruição e vai ser Not o responsável pela sua tentativa de recuperação.

No papel «Le Grand Soir» tinha tudo para ser mais uma comédia negra ao bom estilo da dupla Delépine e de Kervern. Mas o que cativou nos seus anteriores filmes, sobretudo em «Aaltra» e «Louise-Michel», críticas ácidas à economia e ao mundo dos negócios dos dias de hoje, acaba por ser mais do mesmo em «Le Grand Soir». A crítica à economia está mais uma vez lá, assim como a uma sociedade que vive alheada em centros comerciais e hipermercados e não liga às vítimas da dita crise económica. Além de ser um pouco mais do mesmo, «Le Grand Soir» vive de um argumento desequilibrado, o que se nota bastante, por exemplo, na história da relação dos dois irmãos com os pais. Nem os cameos de actores que participaram nos anteriores filmes da dupla, uns mais visíveis do que outros, acabam por safá-lo do desastre.

Vale sobretudo por algumas piadas bem conseguidas, que serão do agrado dos adeptos do estilo da dupla, e pela grande personagem que é Not, interpretada por um enorme Benoît Poelvoorde, a estrela dessa pequena pérola de culto dos anos 1990 chamada «Manual de Instruções para Crimes Banais», que conquista tudo sempre que está em cena. Pena o resto do filme não estar à altura de tamanha personagem. Em suma, «Le Grand Soir» faz-nos ter saudades dos primeiros filmes de Gustave de Kervern e Benoît Delépine e temer pela qualidade das futuras obras da dupla que tanto prometeu com a estreia de «Aaltra».

«Le Grand Soir» integra a secção Cinema Emergente do IndieLisboa 2013 e vai passar ainda nas seguintes sessões:

20 Abril, 14:45, Cinema City Classic Alvalade, Sala 3
22 Abril, 17:00, Cinema City Classic Alvalade, Sala 3



Classificação: 3/5

quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Caça, de Thomas Vinterberg (2012)

(crítica com spoilers)
Algo vai mal no Reino da Dinamarca é uma das mais famosas expressões de «Hamlet», a popular peça de teatro de William Shakespeare. Se o bardo inglês fosse vivo e gostasse de Cinema talvez não dissesse o mesmo sobre o actual estado do cinema que se faz por terras dinamarquesas. Em poucas semanas estrearam dois bons filmes oriundos daquele país: «Um Caso Real», de Nikolaj Arcel, filme que foi a escolha dinamarquesa para os Óscares, e «A Caça», de Thomas Vinterberg. E se ambos os filmes são recomendáveis, mesmo sendo completamente diferentes e eventualmente dirigidos a públicos diferentes (um é um drama histórico e o outro um drama bastante actual), o regresso de Thomas Vinterberg, companheiro de von Trier nos tempos do Dogma 95, merece ser destacado pois é até agora a melhor obra que tive oportunidade de ver em sala este ano.

Tendo como cenário uma pequena localidade, onde todos se conhecem, o filme relata o que acontece a Lucas (Mads Mikkelsen), um funcionário de um jardim de infância, quando uma das crianças afirma ter tido contactos sexuais com ele. Numa comunidade pequena como aquela o rumor espalha-se num instante e o antigo cidadão exemplar acaba por ser posto de parte e ninguém acredita na sua versão dos acontecimentos, condenando-o por algo que não fez (uma acusação gravíssima, tendo em conta o tipo de crime de que Lucas é acusado) e com base num relato confuso. No final tudo leva a crer que o assunto ficou resolvido, a comunidade está de novo junta, mas as últimas sequências, em jeito de epílogo, provam que não será bem assim e há certas coisas que não voltarão a ser as mesmas. Por muito que as aparências nos tentem contradizer é isso que nos quer dizer aquele brilhante final na floresta, apesar de ser de certa forma previsível, onde não sabemos quem é o caçador que ataca Lucas (podia ser qualquer um dos seus amigos ou um simples membro da comunidade).

E é aqui que Vinterberg, que disse em várias entrevistas que o objectivo de «A Caça» foi mostrar uma caça às bruxas nos dias de hoje, nos leva a pensar a sério no assunto. O que se passa ali podia passar-se em qualquer sítio. Não terá sido à toa que o realizador não quis dar um nome à localidade onde decorre a acção do filme, dizemos nós. E custa levar com um murro daqueles no estômago, pois é complicado saber o que fazer numa situação daquelas, onde a vítima não foi a criança, que como se fartam de dizer os membros da comunidade, não mente, mas sim um adulto, acusado de um dos piores crimes, acusação essa que dificilmente conseguirá limpar. Fica-lhe pegada à pele, como uma tatuagem que não sai. Estar do lado da comunidade (numa das entrevistas a propósito do filme Vinterberg admite que estas são inocentes naquilo que fazem - e no fundo talvez assim seja, pois têm uma reacção que muitos julgam ser a normal num caso daqueles e querem proteger os mais fracos) ou de alguém que é acusado de ter abusado de uma criança. No nosso lugar é relativamente fácil, pois sabemos que nada se passou, mas não é fácil ajuizar a reacção daquelas pessoas, pois não sabem que o que estão a fazer tem por base uma mentira.

No meio disto tudo temos uma excelente interpretação de Mads Mikkelsen, no papel de Lucas, que dá tudo o que tem para criar aquela personagem, sem nunca parecer demasiado forçado no papel do inocente condenado por algo que não cometeu. Faz-nos lembrar, com as devidas distâncias, um outro inocente condenado por um crime que não cometeu: o Joe Wilson, de «Fúria», o clássico de Fritz Lang. Mas em «A Caça» o tema é muito mais actual e os acontecimentos relatados no filme de Vinterberg bem poderiam ter lugar noutras latitudes, pois no fundo o filme não é mais do que um retrato de uma comunidade (e porque não um retrato de pessoas) a braços com um caso específico. E dá que pensar, mesmo passadas várias horas após o visionamento, sobre o que uma mentira inocente pode fazer para destruir a vida de alguém.

Classificação: 5/5

quinta-feira, 28 de março de 2013

Sete Psicopatas, de Martin McDonagh (2012)

Quando estreou a sua primeira obra, o fabuloso «Em Bruges», Martin McDonagh provou ser dono de um refinado humor negro. Quatro anos depois o realizador britânico regressou e trouxe consigo uma dose ainda maior desse humor negríssimo, tão ao gosto das terras de sua majestade. Tal como o seu filme anterior, «Sete Psicopatas» conta com a presença de Colin Farrell no papel principal, mas como brinde o cineasta conseguiu ainda reunir um elenco de luxo onde encontramos nomes como Sam Rockwell, Christopher Walken ou Woody Harrelson, para referir apenas os nomes mais sonantes. Podíamos ainda acrescentar os nomes de Michael Pitt, Harry Dean Stanton ou Tom Waits, mas o texto acabaria por se tornar chato.

E chato não é um bom adjectivo para definir «Sete Psicopatas», a história de Marty (Farrell), um argumentista com problemas de álcool que está com dificuldades para escrever o seu próximo filme, chamado precisamente «Sete Psicopatas». É aqui que entra em cena o seu melhor amigo Billy (Rockwell), que se oferece para o ajudar a escrever o argumento. Acontece que Billy é um fura vidas que neste momento se dedica à lucrativa actividade de rapto de cães, animais que rapta para depois entregar aos seus donos e assim receber a recompensa. O negócio começa a dar para o torto quando Billy e o seu comparsa Hans (Walken) raptam o animal de estimação de Charlie (Harrelson), um gangster mau como as cobras que faz tudo para recuperar o seu cão e coloca a dupla em apuros. O pobre Marty acaba por se ver metido no meio desta embrulhada, mas a experiência acaba por ser útil na escrita do seu argumento.

No fundo «Sete Psicopatas» entra naquele género de filmes que costuma ser designado de «filme dentro do filme». À medida que a acção avança vamos travando conhecimento com a história dos sete psicopatas que serão depois as personagens do argumento de Marty. E aqui há personagens para todos os gostos: reais ou imaginárias, sempre dentro do universo do filme de Martin McDonagh. O resultado final acaba por ser uma comédia negra, que aponta em todas as direcções, e irá agradar aos amantes deste tipo de humor. Mesmo que à partida o argumento possa parecer confuso (e com tantas reviravoltas e personagens a entrar e sair do ecrã havia esse enorme risco), «Sete Psicopatas» consegue chegar incólume ao final, com todas as pontas soltas a ganharem sentido até ao arranque dos créditos finais. E com excelentes interpretações, sobretudo as de Rockwell, Walken (como há muito não o víamos) e Harrelson, que fazem deste um dos melhores filmes a chegar às salas portuguesas em 2013. E atenção às inúmeras referências cinéfilas que vão surgindo ao longo do filme.

Classificação: 4/5

terça-feira, 26 de março de 2013

Ferrugem e Osso, de Jacques Audiard (2012)

Jacques Audiard tem sido um dos melhores cineastas a sair de França nos últimos anos. Dono de uma curta, mas segura, carreira (seis filmes entre 1994 e 2012) o realizador gaulês chegou ao ano passado com a pesada tarefa de fazer algo a seguir a dois grandes filmes: «De Tanto Bater o Meu Coração Parou» e «Um Profeta». Este último valeu-lhe mesmo um mais do que merecido reconhecimento mundial ao ser nomeado para Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares. Teve o azar de concorrer contra outra obra-prima do cinema recente: «O Laço Branco», de Michael Haneke, que acabou por conquistar a estatueta dourada. Por tudo isso, e por ser um dos realizadores favoritos cá da casa (os interessados podem seguir neste link uma espécie de especial que lhe dediquei durante a última edição da Festa do Cinema Francês, quando Jacques Audiard foi um dos homenageados), «Ferrugem e Osso» era aguardado com enormes expectativas. E como acontece na maior parte das vezes, com enormes expectativas, vêm enormes desilusões.

Dizer que «Ferrugem e Osso» é um mau filme é uma barbaridade, porque não é. Mas tendo em conta os filmes a que Audiard nos habituou ao longo da sua carreira, o seu mais recente filme acaba por saber a pouco. Muito pouco. Apesar de não fugir muito dos seus universos (a história centra-se em duas figuras que vivem à margem da sociedade dita normal), falta a «Ferrugem e Osso» uma certa tensão e nervosismo que existia nos outros filmes do cineasta, nomeadamente desde «Nos Meus Lábios», e se notava em cada plano dos três filmes anteriores de Audiard. E esta talvez seja a maior desilusão do filme, que nem a presença de Marion Coutillard (que apesar de ter uma forte interpretação, está longe do seu melhor) ajuda a melhorar um filme que se fica apenas pela mediania, precisamente por sentirmos a falta dessa tensão à flor da pele que Audiard nos habituara a sentir nos seus filmes.

Um dos principais problemas de «Ferrugem e Osso» é uma história um pouco frouxa, que ainda por cima avança aos abanões, como se alguém se tivesse esquecido de ler o capítulo 'como encadear a acção' nos manuais que ensinam a fazer bom Cinema. Esta falha faz com que certos pormenores não se percebam muito bem na história de Alain (Matthias Schoenaerts) e Stéphanie (Marion Cotillard), o par central de «Ferrugem e Osso», que fica bastante distante de outros pares presentes nas obras de Audiard (que nem sempre correspondem a um par amoroso, note-se). Este apontamento não é tanto dirigido à forma como o se optou por montar o filme, que funciona em certos filmes, mas não neste caso, onde o método se prova ineficaz. Parece-nos que ficou muito de fora por contar e acaba por ter um efeito oposto ao que talvez fosse o desejado. Mesmo que consigamos perceber por que razão determinada cena vem a seguir a outra e até faz sentido, nunca percebemos muito bem como fomos lá parar. Falta-lhe algo para conseguirmos compreender melhor o que se passa no universo de «Ferrugem e Osso».

Esta é a principal falha num filme de alguém que no passado nos habituou a obras mais seguras. Quanto à dureza do 'mundo' de Audiard, essa continua presente. Pena não estar à altura dos restantes filmes do cineasta.

Classificação: 3/5

segunda-feira, 25 de março de 2013

Io Sono Li, de Andrea Segre (2011)

«Io Sono Li» é a primeira obra de ficção assinada por Andrea Segre, realizador italiano já com algum historial na área do documentário, e foi o filme que no ano passado levou a melhor sobre «Tabu», de Miguel Gomes, nos prémios Lux, atribuídos pelo Parlamento Europeu. Vitória justa ou não, cada um julgará por si. Por estes lados, deixando de parte a questão da nacionalidade dos dois filmes, considero que o filme italiano fica aquém de «Tabu». O que não significa que «Io Sono Li» não seja um bom filme, sobretudo se tivermos em conta que foi realizado por alguém que não está de todo habituado às regras da ficção e mostrou nesta sua estreia num campo diferente que consegue sair do seu habitat natural para fazer algo novo. Mas acabam por ser obras bastante distantes uma da outra, por isso de difícil comparação. Talvez o filme italiano puxe mais para um sentimento humanista, que nada tem a ver com o universo de «Tabu».

Em «Io Sono Li» Andrea Segre conta-nos a história de Shun Li (Tao Zhao), uma emigrante chinesa que é enviada para uma pequena localidade piscatória perto de Veneza para trabalhar num café, depois de ter trabalhado anteriormente numa fábrica têxtil. Tal como muitos outros emigrantes na sua situação, Shun Li tem de trabalhar para pagar as dívidas ao seu patrão, que a levou para Itália. Além disso, assim que a dívida esteja paga o patrão prometera-lhe também que traria para junto dela o seu filho. Junto da nova comunidade, situada numa pequena ilha-cidade na lagoa de Veneto, Shun Li desenvolve uma relação de amizade com Bepi (Rade Serbedzija) um pescador mais velho, relação essa que não é bem vista, nem pela comunidade local, nem pela comunidade chinesa.

É a partir da relação entre estas duas personagens, ambas emigrantes (Bepi veio da ex-Jugoslávia e vive naquela comunidade há várias décadas), que Andrea Segre filma uma bela história de amizade entre duas pessoas que partilham um gosto em comum: a poesia. Ao mesmo tempo «Io Sono Li» consegue ser um filme bastante actual ao retratar a história de alguém que veio para a Velha Europa, quiçá à procura de uma vida melhor, como se Shun Li personificasse cada um destes 'novos europeus'. E é aqui que Andrea Segre acaba por pôr o seu olhar de documentarista ao dispor da ficção para contar a história de Shun Li, que pode ser semelhante às de muitos outros emigrantes com a sua origem que existem na realidade e terão um historial semelhante ao de Shun Li.

O mesmo olhar de documentarista é visível na forma como Andrea Segre nos mostra as diferenças entre as duas comunidades, cada uma com os seus hábitos e códigos enraizados. Algumas das cenas que mostram este choque de culturas (nem todas, é bom realçar) dão-nos alguns dos momentos mais cómicos do filme, mesmo quando se tratam de coisas mais sérias. E a história de Shun Li e Bepi, unidos pela poesia e pelo seu passado de estrangeiros, é um belo filme sobre a diferença e um exemplo do que é hoje ser estranho numa Europa que ainda continua a servir de porto de abrigo para muita gente à procura de uma vida melhor. Sem cair necessariamente na história da desgraçadinha ou da lágrima fácil. Mais um trunfo nesta estreia do cineasta italiano no universo da ficção, que acaba por relegar para segundo plano as preocupações sociais que um documentário deste tipo poderia mostrar. Elas estão lá, é certo, mas o que interessa a Segre é contar história de duas pessoas, que vai muito além do espaço e do tempo onde se encontram.

«Io Sono Li» passou ontem, dia 24 de Março, em antestreia nacional na sexta edição da Festa do Cinema Italiano no Cinema São Jorge, em Lisboa. O filme de Andrea Segre vai ainda passar pelo Funchal, no dia 14 de Abril às 18h30, no Teatro Municipal Baltazar Dias, e por Loulé no dia 21 de Abril às 21h30, no Cine-Teatro Louletano.

Classificação: 4/5

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Terceiro Homem, de Carol Reed (1949)

Se alguém me perguntar de que material são feitas as obras-primas, não saberei responder. Mas se neste momento alguém me viesse pedir um exemplo de um filme perfeito não hesitaria em responder «O Terceiro Homem», de Carol Reed. Sem pensar duas vezes. Não só é baseado num excelente livro escrito por Graham Greene, que também assinou o argumento do filme, como é um dos melhores filmes Noir de sempre. Passado na Viena do pós-II Guerra Mundial, «O Terceiro Homem» conta a história de Holly Martins (Joseph Cotten), um escritor de livros de cowboys que chega à capital austríaca a convite de um amigo de juventude que lhe prometera uma oportunidade de emprego. Contudo, assim que Holly chega a solo vienense descobre que Harry Lime (Orson Welles) morreu e uma das suas primeiras paragens é precisamente o funeral de Harry. De repente o pobre escritor de romances que ninguém lê, a não ser um dos militares que o recebe, vê-se metido numa embrulhada passada numa cidade ocupada pelas potências que ganharam a II Guerra Mundial para tentar perceber o que aconteceu ao seu amigo. E, como não podia deixar de ser, como acontece sempre nos filmes Noir, nem tudo é o que parece e à medida que o novelo se desenrola tudo fica mais claro para Holly.

Mas se o argumento já era brilhante, o que dizer do resto do filme? Além das enormes interpretações com que somos brindados (a começar pela estrondosa criação de Orson Welles, que segundo a lenda, tem mais do próprio Welles do que o que terá sido escrito por Greene), a grande estrela de «O Terceiro Homem» é Viena e a forma como a cidade é filmada pela equipa liderada por Carol Reed, que nos remete para o imaginário dos filmes expressionistas alemães dos anos 1920. Com a diferença de que neste caso os cenários não são tão fantasiosos, mas muito mais reais. As ruas pequenas estreitas e as ruínas de Viena do pós-Guerra, filmadas através de planos (aparentemente) estranhos, raramente na horizontal, ajudam a criar um cenário onde as sombras ganham outra dimensão. As perseguições, sempre a pé ou em passo de corrida, criam um ambiente de cerco que culminam na fabulosa sequência final nos esgotos da capital austríaca, quando Harry é encurralado e acaba por ter o fim esperado.

De realçar que sendo «O Terceiro Homem» um excelente exemplo do Noir, com todas as características do género, não podemos deixar de dar razão a quem considera este um dos primeiros filmes sobre a Guerra Fria. Ao retratar uma cidade dividida em quatro, consequência do final da II Guerra Mundial, Carol Reed mostra já o clima que iria surgir na Europa até final dos anos 1980 e início da década de 1990. E todas as personagens neste filme acabam por estar sujeitas já a essa divisão, pois estão circunscritas, de certa forma, à zona em que se encontram. Já para não falar na relação entre os militares das quatro potências, que têm de conviver no mesmo espaço e respeitar as regras de cada um.

Todos estes pormenores estão na obra-prima de Carol Reed, onde não há heróis, como diria Harry Lime (já vos disse quão magistral é esta criação de Orson Welles? Nunca é demais repeti-lo) a Holly Martins quando os dois se encontram para justificar as suas acções: «What did you want me to do? Be reasonable. You didn't expect me to give myself up... 'It's a far, far better thing that I do.' The old limelight. The fall of the curtain. Oh, Holly, you and I aren't heroes. The world doesn't make any heroes outside of your stories». E nem Holly consegue ser o típico herói, pois a sua imagem é manchada pela forma como lida com todo o caso, sobretudo a partir do momento em que se apaixona por Anna Schmidt (Alida Valli), a amante de Lime. Como muito bem diz João Bénard da Costa na análise que faz a «O Terceiro Homem», esta é a única personagem que sai limpa da enorme sujeira que era Viena naquele período, mesmo que o seu destino futuro seja incerto.

Por tudo isto e muito mais (faltou falar da fabulosa banda sonora assinada por Anton Karas, que se tornou icónica, por exemplo) «O Terceiro Homem» é um dos filmes mais perfeitos da História do Cinema. E para mim passou a ser um dos meus filmes favoritos e será uma das minhas recomendações para quem nos próximos tempos me perguntar um exemplo de filme perfeito. Para os interessados, publiquei um post com uma fotogaleria alusiva ao filme, que pode ser vista aqui.

Classificação: 5/5

segunda-feira, 18 de março de 2013

A Última Vez Que Vi Macau (2012) e Alvorada Vermelha (2011), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata

«A Última Vez Que Vi Macau» é um daqueles objectos cinematográficos difíceis de catalogar. Metade documentário, metade ficção, o filme da dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata leva-nos a Macau, onde ambos têm as raízes, depois de João Rui Guerra da Mata receber um pedido de ajuda por parte de uma amiga auto-exilada na antiga colónia portuguesa que se encontra em apuros. Enquanto aguarda por novo contacto da sua amiga, que se envolveu com uma misteriosa seita local, João Rui Guerra da Mata aproveita para visitar alguns dos locais da sua juventude. É entre estes dois elementos que «A Última Vez Que Vi Macau» balança: um documentário sobre o regresso a um local da juventude da dupla, fugindo do típico cartão postal que poderia ser um documentário deste tipo, e ao mesmo tempo uma aventura ficcional com alguns toques de Film Noir, onde as personagens principais são a dupla e a sua amiga. Que curiosamente são personagens que estão bastante ausentes. Tudo o que vemos são sombras, sons dos locais à medida que a história é contada pelo narrador, o próprio Guerra da Mata.

E se a premissa inicial podia ter tudo para dar mau resultado (juntar dois elementos completamente diferentes no mesmo filme poderia facilmente resultar em algo que não é carne, nem peixe), o resultado final acaba por ser uma aposta ganha. «A Última Vez Que Vi Macau» consegue escapar aos clichés do documentário de regresso às origens, sem querer puxar por um sentimento de nostalgia por uma antiga colónia portuguesa à força (que não há no filme, onde apenas vemos imagens da Macau que faz parte do imaginário da infância de Guerra da Mata e não a Macau histórica ou dos casinos), imprimindo-lhe um tom diferente do habitual, graças aos tons Noir que vão surgindo na segunda narrativa, relativa ao desaparecimento da amiga.

Classificação: 4/5

A acompanhar a estreia comercial do filme está a ser projectada a curta-metragem «Alvorada Vermelha», também assinada a meias pelos dois realizadores portugueses. Aqui entramos no domínio do documentário puro para vermos o que se passa no Mercado Vermelho de Macau. Filmada em Fevereiro de 2011, a curta é um olhar dos dois realizadores sobre aquele espaço macaense, onde há de tudo, tal como num mercado normal. Sem qualquer tipo de narração e utilizando quase sempre planos fixos, «Alvorada Vermelha» é como que um retrato filmado do Mercado Vermelho e as rotinas dos que lá trabalham.

Por vezes demasiado visceral, sobretudo para quem possa ser mais sensível a imagens mais fortes (há por aqui muitos animais vivos a serem mortos à frente da câmara), a curta funciona na perfeição como complemento a «A Última Vez Que Vi Macau». Até porque ambos os filmes partilham um plano singular de um sapato de salto alto e a homenagem a Jane Russell, estrela de «Macau», o célebre Noir realizado por Josef von Sternberg em 1952 (mais explícita em «Alvorada Vermelha» do que em «A Última Vez Que Vi Macau»). Mas apenas há-de ser bem apreciada pelos adeptos do documentário. Quem não o for, como é o caso do autor deste blogue, poderá não gostar tanto deste prato de entrada para o regresso a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata.

Classificação: 3/5

domingo, 17 de março de 2013

O Tigre Ataca, de Claude Chabrol (1964)

Apesar de não ser um dos cineastas que ficou entre os grandes da Nouvelle Vague (apesar do seu inegável papel para aquela geração), como Jean-Luc Godard ou François Truffaut, para citar os suspeitos do costume, Claude Chabrol conseguiu cimentar uma longa e prolifera carreira desde a sua estreia, em 1958, até 2009, com o recentemente estreado por cá «Bellamy». Mas esta longevidade não significa que a carreira de Chabrol, cujas obras mais populares tendem a ser policiais ácidos ambientados num mundo burguês, com críticas mordazes ao meio (quase como se de um Buñuel sem surrealismo se tratasse), tivesse sido pêra doce. Logo em 1964 o cineasta gaulês, a braços com más críticas a alguns dos seus filmes, viu-se obrigado a aceitar projectos que não eram do seu agrado. Um desses projectos foi «Tigre Ataca», uma espécie de filme de espiões a la 007.

Nesse mesmo ano o agente preferido de Sua Majestade chegava ao grande ecrã pela terceira vez. O sucesso das aventuras de James Bond, que ainda hoje continua a ser uma das séries de maior longevidade da história do Cinema, levou os produtores de outros países a tentarem seguir a mesma fórmula de sucesso. Em França o clone de 007 chamava-se Tigre e as suas aventuras foram levadas ao Cinema precisamente por Claude Chabrol, numa altura em que a sua carreira estava na mó de baixo. Mas se na origem do projecto estava um filme de acção e espionagem relativamente sério, focado no entretenimento, o universo de Tigre não podia ser mais diferente do de James Bond e cedo constatamos que entrámos no domínio da comédia. Basta ver a entrada em cena do espião francês, interpretado por Roger Hanin, também responsável pelo argumento (escrito a meias com Jean Halain), para chegarmos a essa conclusão.

A partir desta apresentação, já depois de assistirmos à sequência que desencadeia os acontecimentos do filme (um assassinato político ocorrido na Turquia durante a visita de um responsável governamental francês ao país para vender aviões militares), «Tigre Ataca» começa a ser delirante. Aproveitando todos os clichés dos filmes de 007 (vilões maus como as cobras ajudados por anões que não lhes ficam atrás no campo da malvadez, gadgets mirabolantes, belas mulheres e cenas de acção a rodos) a primeira aventura do agente Tigre (que ainda teve direito a mais um filme, também realizado por Chabrol) é divertimento puro. Não sendo um grande filme, longe disso, «Tigre Ataca» é antes uma obra curiosa na carreira de um cineasta que nos habitou a um outro tipo de filmes, completamente diferentes.

E mesmo que não se goste, não há como evitar soltar umas valentes gargalhadas durante o visionamento da estreia de Tigre, de tão absurdo que é. E dar graças por o sucesso alcançado por «Tigre Ataca» por altura da sua estreia ter ajudado Claude Chabrol (que nunca apreciou estes seus filmes) a relançar a sua carreira mais tarde, tornando-se um dos nomes fundamentais do Cinema francês da segunda metade do século passado. «Tigre Ataca» não será uma boa porta de entrada para quem não conhece o cineasta, mas para os fãs do realizador será um filme engraçado de descobrir.

Classificação: 3/5