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domingo, 28 de outubro de 2012

Grindhouse #2 S-21, la machine de mort Khmère rouge e Duch, le maître des forges de l'enfer, de Rithy Panh

Nesta segunda sessão de Grindhouse entramos no território do documentário. Mesmo que não tenha acompanhado de perto a edição deste ano do DocLisboa, que termina hoje, não podia deixar passar em claro aquele que é um dos mais importantes festivais de Cinema em Portugal, dedicado exclusivamente ao género do documentário. Para tal dedico este post da rubrica Grindhouse a dois documentários realizados por Rithy Pahn, que passaram pelo festival: «S-21, la machine de mort Khmère rouge», há alguns anos, e «Duch, le maître des forges de l'enfer», na presente edição do certame.


Nascido em 1964 em Phnom Pehn, no Cambodja, Rithy Pahn teve a sorte de ser um dos cambodjanos a escapar vivo aos terrores do regime dos Khmers Vermelhos, um partido liderado por Pol Pot que dominou o país entre 1975 e 1979 e cuja doutrina provocou o genocídio de uma grande fatia da população do país: as estimativas variam entre os 850 mil e os 2.5 milhões de pessoas mortas em campos de trabalho forçado, pela fome, execuções, tortura e doenças. Este episódio negro da História da Humanidade tem sido abordado por Rithy Pahn nos seus filmes, tanto documentais como ficcionais. Dois dos mais conhecidos, que são destacados nesta rubrica, passaram precisamente pelo DocLisboa em anos diferentes.

«S-21, la machine de mort Khmère rouge», realizado em 2003, leva-nos a um dos centros de detenção dos Khmers Vermelhos, situado em Phnom Pehn e onde terão morrido quase 13 mil pessoas. Depois de um breve enquadramento histórico, o documentário junta dois sobreviventes do S-21 e membros do partido que trabalharam (guardas, fotógrafos, médicos e interrogadores) neste centro de detenção, uma antiga escola que funciona actualmente como um museu em memória das vítimas daquele regime. Ao longo de quase duas horas os sobreviventes questionam os seus captores sobre as razões que os levaram a fazer o que fizeram durante aquele período.

Através destes diálogos tomamos conhecimento dos horrores do regime, com descrições de sessões de tortura e a leitura de relatórios sobre os prisioneiros, relatos impressionantes onde tanto os sobreviventes como os carrascos se questionam quem eram as verdadeiras vítimas: quem tinha o azar de ser considerado inimigo do Partido (e estava à partida condenado não só à morte mas a longas sessões de tortura cujo objectivo era levar os prisioneiros a denunciarem outros inimigos do partido. Na maior parte das vezes bastava ser familiar de alguém que tivesse sido preso para ser considerado inimigo do partido, fosse qual fosse o grau de parentesco, para ir parar às mãos dos Khmers Vermelhos) ou quem era guarda num destes campos e afirmava que preferia morrer na frente de combate a ter de fazer o que o mandavam fazer neste centro de detenção. Há pelo menos um dos guardas que o afirma, apesar de muitos admitirem que o faziam porque tinham medo de ter o mesmo destino dos prisioneiros ou que apenas seguiam a doutrina que lhes era incutida desde sempre e que nunca era posta em causa por ninguém.

Sempre sem intervir directamente nos diálogos, dando destaque aos 'protagonistas' o realizador conseguiu com «S-21, la machine de mort Khmère rouge» fazer um retrato chocante do que se passava num local destes e que ficará marcado para sempre como uma pequena parte de um período negro na História do Século XX. Os sobreviventes, que em diversas sequências do filme questionam o porquê daquelas práticas, apenas pedem que estes acontecimentos não sejam esquecidos, preferindo salvaguardar a memória para as gerações futuras se recordarem do que se passou, em vez de alguém lhes vir pedir perdão por algo que não podem recuperar e que podia ter sido evitado.


Em 2011 Rithy Pahn voltou ao local do crime, desta vez para entrevistar Kang Kek Iew, também conhecido pelo nome de guerra Duch, o director do centro de detenção S-21 e um dos nomes que é referido por diversas vezes no documentário «S-21, la machine de mort Khmère rouge», sem contudo chegar a aparecer directamente no mesmo. Em «Duch, le maître des forges de l'enfer» o estilo é completamente diferente do anterior. Duch (o primeiro membro dos Khmers Vermelhos a ser chamado à Justiça, que o condenou primeiro a 30 anos de prisão por crimes contra a Humanidade, sentença que no início deste ano foi alargada para prisão perpétua) fala na primeira pessoa sobre o papel que teve não só enquanto membro do regime, mas também enquanto líder daquele campo de detenção, considerado um dos mais importantes dos Khmers Vermelhos, pois juntou num mesmo complexo todas as anteriores prisões de Phonm Pehn.

Em vez de imagens dentro do centro de detenção, como acontecia no documentário anterior de Rithy Pahn sobre o S-21, «Duch, le maître des forges de l'enfer» centra-se quase em exclusivo na figura de Duch, que é confrontado com cópias de fotografias dos prisioneiros e de figuras do regime, assim como relatórios escritos e assinados por ele mesmo à medida que vai falando dos acontecimentos. As únicas intervenções externas vão surgindo num ecrã de computador, onde o antigo responsável pelo centro de detenção assiste a imagens de «S-21, la machine de mort Khmère rouge» e relatos de outras pessoas envolvidas nas actividades do S-21, algumas das quais são negadas por Duch, que chega a rir-se das declarações em alguns casos.

As imagens de arquivo, já presentes no documentário de 2003, aqui ganham mais peso e estão bastante presentes ao longo do filme para mostrar alguns dos protagonistas do regime. Ao contrário de «S-21, la machine de mort Khmère rouge», que pretendia mostrar o horror dos campos de detenção dos Khmers Vermelhos, «Duch, le maître des forges de l'enfer» é o retrato de uma das figuras mais sinistras de um regime responsável por um período que tão depressa não será esquecido pela população do Cambodja. Apesar de serem documentários diferentes no seu formato, vistos em conjunto formam um interessante díptico que ajuda a compreender melhor o S-21, apenas um dos vários centros de detenção criados pelos Khmers Vermelhos entre 1975 e 1979, e o que se passou naquele local.

E o visionamento destes filmes, mesmo que por vezes nos deixe com o estômago às voltas devido às horríveis descrições das práticas que são feitas, tanto em «S-21, la machine de mort Khmère rouge», pelos sobreviventes e pelos guardas, como em «Duch, le maître des forges de l'enfer», por um dos líderes do centro de detenção, é fundamental para quem quiser saber mais sobre este período histórico. Quanto ao objectivo de preservar a memória destes acontecimentos, estas obras de Rithy Pahn não falham, mesmo que  por vezes sejam difíceis de ver.

domingo, 21 de outubro de 2012

Grindhouse #1: Os Heróis não Choram e Códigos de Guerra, de John Woo

Há coisas que eu, enquanto fã de Cinema (para não dizer cinéfilo, palavra que ultimamente parece que tende a ganhar o estatuto de insulto/palavrão), gosto de fazer. Ou, como diz o ditado, cada maluco tem a sua mania. Uma delas é, tendo oportunidade de o fazer, ver obras de um determinado realizador, que tenham ou não pontos em comum, que possam dar uma imagem da sua obra em diferentes fases da carreira do cineasta, para tentar identificar o que mudou de um filme para o outro. Ou, no caso deste artigo em concreto, dedicado a dois filmes de John Woo («Os Heróis Não Chora», de 1986, quando o realizador era um nome consagrado do cinema feito em Hong Kong, e «Códigos de Guerra», de 2002), já no período norte-americano de Woo), o que mudou de um período da carreira do realizador para outro. Foi um bocado neste espírito que me lembrei de criar esta rubrica, com a análise de dois filmes de um realizador, a que chamarei de Grindhouse, à semelhança das sessões duplas que foram homenageadas há uns anos no projecto homónimo realizado por Quentin Tarantino e Robert Rodriguez.

Seguindo a ordem cronológica e de visionamento, comecemos então por «Os Heróis Não Choram». Realizado no mesmo ano de «Crime em Hong Kong» («A Better Tomorrow»), um dos filmes mais populares da fase de Hong Kong de Woo, este não é um policial, género que fez do realizador um dos nomes consagrados nos anos 1980 naquelas latitudes. É antes um filme de acção, à semelhança de obras que se faziam nos EUA na mesma década e protagonizadas por vedetas como Sylvester Stallone ou Arnold Schwarzenegger, tais como «Comando» ou os dois últimos episódios da série «Rambo». Neste caso, a história centra-se num grupo de mercenários contratado pelo Governo da Tailândia para raptar um poderoso traficante de droga.

Depois de conseguirem levar a cabo a sua tarefa, numa missão que é mostrada logo no início do filme, com todo o esplendor dos filmes de acção, com mortes e explosões por todo o lado, que fazem corpos voar pelo cenário, os mercenários têm de levar o traficante à Justiça e pelo caminho atravessar uma perigosa floresta onde se vão deparar com novos inimigos. Apesar do tom violento que encontramos em «Os Heróis Não Choram» (título curioso, tirado da versão inglesa do filme, pois não há personagem que não tenha uma lágrima ao canto do olho, por mais pequena que seja), onde o sangue é uma constante, esta obra não deixa de ter uma certa faceta poética, tão ao estilo dos filmes que deram fama a John Woo, sobretudo os já referidos policiais. E a comédia é algo que está bem presente em todo o filme, seja em pequenos apartes entre os protagonistas, seja em alguns gags visuais, o que torna o filme um entretenimento garantido para os fãs do género, mesmo que por vezes a história seja pouco mais do que básica, o que, para o propósito deste tipo de filmes, divertir, era suficiente.

Em 2002, data de estreia de «Códigos de Guerra», John Woo já estava praticamente enraizado em Hollywood, onde realizou o primeiro filme em 1993: «Perseguição Implacável», protagonizado por Jean-Claude Van Damme. Vindo directamente do terceiro episódio do franchise «Missão: Impossível», o cineasta asiático foi o responsável por levar ao grande ecrã um filme de guerra inspirado em factos verídicos: o recurso a índios Navajo e ao seu dialecto por parte do Exército dos EUA, na região do Pacífico durante a II Guerra Mundial, para enviar mensagens em código impossíveis de detectar pelos japoneses. Protagonizado por Nicolas Cage, cuja personagem acaba por ser mais importante do que os índios, actor com quem Woo já tinha trabalhado naquele que será o seu melhor filme e o que mais se aproximará dos seus policiais de Hong Kong nesta fase norte-americana («A Outra Face»), «Códigos de Guerra» não poderia ser mais diferente do que «Os Heróis Não Choram».

A acção também está bastante presente neste filme, mas já não é a mesma coisa em comparação com o filme de 1986. Mesmo com mais meios e com as cenas de guerra mais trabalhadas, à semelhança de outros filmes passados na II Guerra Mundial que foram retratados nos EUA no final da década de 1990 e início da década de 2000, falta a «Códigos de Guerra» uma certa poesia e a forma de filmar das cenas de acção, mais coreográficas, que encontrávamos em «Os Heróis Não Choram» e noutros filmes de Woo no passado. O tom aqui é mais dramático, tudo é muito mais sério, e não é a acção pura e dura dos filmes de John Woo de Hong Kong que nos dão. Mesmo comparando com algumas obras norte-americanas deste período, que têm este conflito como pano de fundo, «Códigos de Guerra» não está certamente entre os melhores exemplos e possivelmente vai entrar para a história como «mais um dos projectos onde Nicolas Cage entrou na primeira década do século XX».

Moral da história: à semelhança de muitos cineastas que trocaram os seus países de origem por Hollywood, esta mudança de ares parece que não fez bem a John Woo. Se em Hong Kong (que não deixa de ter uma indústria com uma realidade completamente diferente da norte-americana, é certo) o realizador conseguia filmar mais do que um filme por ano, nos EUA John Woo apenas conseguiu realizar seis filmes (mais três se considerarmos os telefilmes) em 10 anos. Todo o estilo que criou na primeira fase da sua carreira, cimentado em excelentes policiais e filmes de acção e artes marciais, acabou por desaparecer aos poucos nos EUA, onde a sua marca praticamente apenas se nota nos três primeiros filmes que realizou por lá. «Códigos de Guerra» acaba por ser, neste caso, uma pálida imagem do que foi em tempos o cinema de Woo, cujo exemplo aqui dado é «Os Heróis Não Choram».